“ "correio de pablo neruda para mario jiménez", levantando numa das mãos o pacote (...) e na outra uma ansiada carta, o carteiro voou (...) e arrebatou
os dois objectos. fora de si...
- qual abro primeiro, a carta ou o pacote?
- o pacote, filho - sentenciou dona rosa. – na carta só vêm palavras.
- não, senhora. primeiro a carta (...)
Rasgou-o com a paciência e a leveza de uma formiga. com as mãos a tremer, pôs diante dos seus olhos o conteúdo (...)
"que-ri-do ma-rio ji-mé-nez de pés a-lados" (...)
"com saudades abraça-vos o vosso vizinho e alcoviteiro, pablo neruda".
- vamos abrir o pacote - disse dona rosa depois de cortar com a fatídica faca da cozinha os cordéis que o atavam. mario pegou na carta, e pôs-se a observar cuidadosamente o final e depois o reverso.
- não há mais?
- o que mais queria então, meu genro?
- essa coisa com «p s» que se põe ao acabar de escrever.
- não, pois, não tinha nenhum disparate de ps.
- acho estranho que seja tão curta. porque vendo-a assim de longe, parece que é mais comprida. (...) quando me ensinaram a escrever cartas na escola, disseram-me que tinha sempre de se pôr no fim ps e depois juntar qualquer outra coisa que não se tinha dito na carta. tenho a certeza de que don pablo se esqueceu de alguma coisa.
rosa remexeu a abundante palha que enchia o pacote, até que acabou por tirar um (...) gravador «sony» de microfone incorporado. preparava-se para ler um cartão manuscrito a tinta verde, pendurado de um elástico que rodeava o aparelho quando mario lho tirou com um puxão.
- ah, não senhora! você lê com demasiada rapidez. pôs o cartão uns centímetros à sua frente, como se o colocasse numa estante de música, e foi lendo com o seu tradicional estilo soletrado:
"que-ri-do ma-rio dois pon-tos ca-rre-ga o bo-tão do mei-o".
- você demorou mais tempo a ler o cartão que eu a ler a carta - simulou um bocejo a viúva.
- É que você não lê as palavras, mas devora-as, senhora. as palavras temos de saboreá-las. temos de deixá-las desfazerem-se na boca. fez uma espiral com o dedo, e a seguir assestou-o na tecla do meio. a voz de neruda:
"pós-scrito".
pós-scrito! eu bem disse que não podia haver uma carta sem pós-scrito. o poeta não se esqueceu de mim. eu bem sabia que a primeira carta da minha vida havia de vir com pós-scrito. agora está tudo claro, sograzinha. a carta e o pós-scrito.
fez voltar atrás a fita, carregou a tecla indicada e aí estava outra vez a pequena caixa com o poeta lá dentro. um neruda sonoro e portátil.
- "pós-scrito" - ouviu outra vez embevecido. "queria mandar-te mais alguma coisa além das palavras. por isso meti a minha voz nesta gaiola que canta. uma gaiola que é um pássaro. ofereço-ta. Mas também quero pedir-te uma coisa, mario, que só tu podes fazer. os outros meus amigos todos ou não
saberiam o que fazer, ou pensariam que sou um velho gagá e ridículo. quero que vás com este gravador passear pela ilha negra, e me graves todos os sons e ruídos que fores encontrando. Preciso desesperadamente nem que seja do fantasma da minha casa. a minha saúde não anda bem. falta-me o mar. faltam-me os pássaros. manda-me os sons da minha casa. vai ao jardim e deixa tocar os sinos. Primeiro grava esse repicar fininho dos sininhos pequenos quando os agita o vento, e a seguir puxa a corda do sino maior, cinco, seis vezes. sinos, meus sinos! não há nada que soe tanto como a palavra sino, se a ouvimos de um campanário junto do mar. e vai até às rochas, e grava-me a rebentação das ondas. e se ouvires gaivotas, grava-as. e se ouvires o silêncio das estrelas siderais, grava-o. paris é bonita, mas é um fato que me fica demasiado largo. além disso aqui é inverno, e o vento revolve a neve como um moinho de farinha. a neve sobe e sobe, trepa-me pela pele acima. faz de mim um triste rei com a sua túnica branca. já chega à minha boca, já me tapa os lábios, já não me saem as palavras"."
em "O carteiro de pablo neruda" de Antonio Skármeta
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