domingo, 25 de março de 2012

"Curriculum vitae

Há bocado sentei-me na secretária e abri o pdf com o meu Curriculum Vitae, que não actualizo desde 2010, e a primeira coisa que pensei depois de o ler foi: "Que m*** é esta?". O meu Curriculum Vitae é tudo menos eu, e recusei-me a acreditar que o mais importante de mim estava ali, naquele pdf simplório e triste.
Não gosto de escrever o meu Curriculum Vitae. Pior, não gosto de nenhum Curriculum Vitae por definição. Sei que já fiz o meu várias vezes, e foi sempre através dele que arranjei emprego, ou seja, despindo-me da pessoa que sou e a fingir-me outra. É isso que é escrever um Curriculum Vitae: enganar os outros enganando-nos a nós mesmos. Tristemente, ainda hoje uso o meu aqui e ali, na perspectiva de alterar a minha vida profissional.

Se eu escrevesse o meu Curriculum Vitae de forma honesta, diria que este é um bom momento para trabalhar em qualquer lugar porque cumpro com a condição essencial para estar feliz, que é estar totalmente apaixonado pela Raquel e acreditar que ela também o está por mim. Ao mesmo tempo, diria também que é precisamente por isso que não me apetece trabalhar demasiado tempo em lugar nenhum. Quero esse tempo para poder aproveitar esse Amor.
Explicaria que, como experiência, já declarei Amor a mulheres que se riram na minha cara e que chorei por isso; já fiz três mil quilómetros de comboio com um bilhete falso para poder jantar com o objecto da minha paixão, já adormeci de cansaço à espera dum encontro que nunca chegou a acontecer. Como prova de toda a minha vida, tenho alguns cabelos brancos, algumas rugas junto aos olhos e uns lábios que ainda sabem sorrir e chorar.
Foi com o Amor que primeiro aprendi a fingir que estava tudo bem na minha vida mesmo quando não estava, e depois, num exame final, aprendi ainda a nunca mais fazer isso. Aprendi a evitar silêncios, a deixar de jogar ao gato e ao rato, a deixar de mentir. Acima de tudo aprendi a expulsar do meu corpo a palavra "Amo-te" sempre que ela estiver presa lá dentro.
Agora olho para o meu Curriculum e só vejo que trabalhei nesta ou naquela empresa, neste ou naquele país, nesta ou naquela função. É muito pouco, mas se é assim que as coisas funcionam, tomem lá. Não merecem mais."


Retirado do blog: "Não compreendo as mulheres"

quinta-feira, 8 de março de 2012

"Lori tirou-me o desenho das mãos, segurou-o na sua frente e, com um ar pensativo, examinou-o.
- Sabes em que estava a pensar enquanto o fazia?
- O que era?
- Bem, estava a pensar que não era tão bom como uma imagem autêntica. Sabes como é, como uma fotografia. Como uma revista ou algo parecido. E queria mesmo que ficasse perfeito e sem erros.
(...)
- Ah Lor. Não digas isso. É lindo. Melhor do que qualquer fotografia velha.
- Não, não. Não é isso que quero dizer. (...) Mas sabes uma coisa em que estava a pensar, Tor? (...) O que eu estava a pensar era: é perfeito. Não a parte que vemos, mas o que está dentro de nós. Na minha cabeça o pássaro era perfeito.
Virou-se para olhar para mim e esboçou um sorriso.
- E isso para mim é o bastante para gostar deste desenho, mesmo que não seja realmente perfeito. Porque... bem, porque sei que podia ser... - afirmou e, virando-se para mim, perguntou: - Sabes o que quero dizer?
(...)
- És uma sonhadora, Lor.
Olhou-me fixamente, com aqueles olhos escuros e redondos e para além de todos os sorrisos. Não disse nada.
- É bom ser sonhador.

O desenho do pássaro azul nunca foi afixado no nosso jornal de parede. Levei-o comigo para casa. Afixei-o sobre a minha cama para me fazer lembrar, pelo menos duas vezes por dia da beleza num mundo imperfeito. "

em "Os filhos do afecto" de Torey Hayden

sábado, 3 de março de 2012

"Com lados felizes eu já não me iludo"

Vai-me acontecendo nestes tempos a descoberta do chamado "lado lunar" (como já dizia o Rui Veloso).
Se estivermos com atenção quando conhecemos alguém de novo há aí uma mistura no que ouvimos. Muitas vezes quem nos fala só diz o que queremos ouvir e nós só ouvimos aquilo que queremos.

Quando os lados felizes desaparecem ficamos com alguma dificuldade em perceber se nós é que não quisemos ouvir ou se simplesmente não nos foi dito que ia ser assim.

Fico com algumas dúvidas se isto é uma decepção ou um desafio.
Talvez em alguns casos seja o desafio de aceitarmos as pessoas como são e não como gostaríamos que fossem. Mas quando falamos de gostar deste lado lunar... Aí já é outra coisa! Para isso temos que desconstruir a imagem que fizemos e reconstruir outra, esta pelo menos mais verdadeira (não totalmente verdadeira, porque do lado lunar também continuamos a ouvir só o que queremos...).

Mas desta vez, mesmo que com alguma decepção, acho que quem gosta da verdade, vai sempre preferir um verdadeiro lado lunar a um falso lado feliz.

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